Soluções construtivas tradicionais tendem a funcionar bem para seus respectivos contextos, por terem resistido a centenas de anos de testes e melhoramentos, e utilizarem técnicas e materiais disponíveis localmente. Ainda que a globalização e a democratização no acesso a tecnologias tenha trazido mais conforto e novas oportunidades à humanidade, no setor da construção civil observou-se uma homogeneização das soluções e a dependência nas cadeias de suprimentos globais para materiais e componentes de construção. Isso também constituiu uma ruptura entre a passagem de conhecimentos entre gerações e um apagamento das tradições.
Em relação a soluções passivas de resfriamento de edificações, atualmente há um esforço para recuperar antigas técnicas utilizadas no curso da história em localidades que sempre tiveram que lidar com o clima quente. Isso é ainda mais latente devido ao alto custo energético que o resfriamento impõe, a um cenário de aquecimento global e, principalmente, pelo fato de que dentre as projeções de incrementos populacionais, boa parte das megalópoles se localizarão na África e Ásia, com climas quentes. Pensando em um cenário futuro, é possível se inspirar no passado e aplicar essas técnicas antigas de resfriamento para edificações contemporâneas?
Fatih Birol, diretor executivo da IEA (International Energy Agency), diz que “a crescente demanda por aparelhos de ar condicionado é um dos pontos cegos mais críticos do debate energético de hoje”. Segundo a IEA, o uso de ar condicionado e ventiladores elétricos é responsável por quase 20% do total de eletricidade usado em edifícios em todo o mundo hoje. E a mesma fonte aponta que, em 2050, o número de unidades de ar condicionado será mais do que o triplo de hoje, e isso deverá demandar tanta eletricidade quanto toda a Índia e a China consomem hoje. Ao mesmo tempo, ondas de calor estão se tornando mais longas e mais intensas em todo o mundo, o que pode agravar ainda mais esses dados.
Não é exagero afirmar que resfriar os interiores será o desafio arquitetônico do futuro. No entanto, observar como as localidades que sempre sofreram com climas quentes (áridos ou tropicais), muito antes de mecanismos de condicionamento de ar, pode nos dar pistas de como resolver este problema. Entender os conceitos e recuperar algumas técnicas de resfriamento passivas de edificações, dispensando o uso de energia elétrica e lançando mão de materiais e técnicas construtivas locais, pode ser um bom caminho.
Da Pérsia: Torres de Vento
Torres de vento, também chamados de badgirs, são elementos arquitetônicos de resfriamento tradicional que têm sido usados por milhares de anos em países com climas quentes e secos. A maior parte dos pesquisadores creditam a invenção dos elementos aos persas, mas também há vestígios em pinturas de paredes datadas de 1300 aC que evidenciam algo parecido com elas no Egito. De qualquer forma, consistem em uma torre com aberturas no topo que capturam os ventos locais prevalecentes, direcionando-os para o interior do edifício através de uma série de dutos e aberturas.
Seu funcionamento é simples: à medida que o vento sopra no topo da torre do vento, isso cria uma diferença de pressão entre o interior e o exterior da torre, o que atrai ar através das aberturas e para o interior do edifício. Quando o ar frio entra no prédio, ele pode circular e esfriar o espaço interior, ajudando a mantê-lo com uma temperatura confortável. A altura da torre, o número de lados, o número de aberturas e a quantidade e o posicionamento das pás do interior influenciam a eficiência, impactando a velocidade e a turbulência do fluxo de ar. Há casos em que as torres são construídas sobre Qanats (canais), que suprem a demanda por água nas casas. Como são completamente sombreados, eles também criam uma corrente de ar fresca e densa causada por convecção e evaporação.
Da Índia: Jaali
Jaali é um termo para "bloco perfurado", e conforma padrões complexos de luz e sombra, ao mesmo tempo que ventila os espaços internos. Na forma de peças de cimento, terra e madeira, o jogo de cheios e vazios é um símbolo cultural da arquitetura indiana, vistos em muitos edifícios históricos, incluindo o Taj Mahal e o Forte Vermelho em Délhi. Eles continuam sendo usados na arquitetura moderna também, e seus padrões e designs únicos inspiraram artistas e designers em todo o mundo.
Um jaali é normalmente instalado como uma pele externa no edifício, e sua seção transversal geralmente evidencia uma abertura maior do lado de fora e uma abertura menor por dentro. À medida que o vento passa na pela, ele cria uma diferença de pressão entre o interior e o exterior do edifício. O recurso de resfriamento do Jaali depende do chamado efeito Venturi: quando o ar flui em maior velocidade ao circular por uma passagem mais estreita, cria uma pressão negativa no processo, ocasionando um vácuo parcial, que neste caso, impulsionará o fluido. O ar é comprimido e, quando liberado, torna-se mais frio.
Do mundo árabe: Mashrabiya
Mashrabiya é um elemento arquitetônico tradicional usado em países do Oriente Médio e Norte da África. É um tipo de treliça ou tela de madeira que normalmente é colocada em janelas, varandas e outras aberturas em edifícios, e são elementos altamente decorativos, com padrões geométricos complexos. Sua função principal é fornecer privacidade e sombra, permitindo que o ar e a luz fluam para o interior. Para amplificar o efeito de resfriamento, em alguns casos são incluídos vasos de argila, com água, areia ou palha úmida. À medida que o ar quente passa pelas perfurações, ele também abrange a superfície porosa dos vasos de argila, a umidade no vaso evapora, o que esfria o ar. Este ar resfriado flui para o edifício, ajudando a reduzir a temperatura do espaço interior, através do resfriamento evaporativo, particularmente eficaz em climas quente e secos, sem a necessidade de energia elétrica.
Atualmente, projetistas e pesquisadores tem buscado aproximar o conhecimento vernacular com as tecnologias que dispomos. Por exemplo, a equipe do Ant Studio reinterpretou as técnicas tradicionais de resfriamento evaporativo, inspirada nos jaali, para construir um protótipo de cones de argila cilíndrica, com design e tamanho personalizados. Já nas Torres Al Bahar, um par de arranha-céus em Abu Dhabi, a fachada é um sistema único de painéis de sombreamento dinâmico inspirados nos já citados Mashrabiya. Neste caso, no entanto, trata-se de uma "fachada responsiva", consiste em mais de 2.000 elementos hexagonais que se movem em resposta ao movimento do sol, fornecendo sombra aos espaços internos do edifício, controlados por um programa de computador que ajusta a posição de cada elemento com base no ângulo do sol, otimizando sombreamento e reduzindo o ganho solar. O resultado é uma fachada que muda ao longo do dia, dando ao edifício uma aparência dinâmica e responsiva.
Além destes dispositivos citados, há outros muitos elementos projetuais e materiais que podem contribuir para melhorar o conforto térmico dos ambientes internos: materiais com alta inércia térmica, pátios internos, fontes de água e elementos de sombreamento. É importante reforçar que ao usar materiais disponíveis localmente e elementos arquitetônicos tradicionais, arquitetos e designers podem criar edifícios bem adaptados ao clima e ambiente locais, além de respeitar e celebrar as tradições locais e o patrimônio cultural. Sem dúvidas, acabamos esquecendo de citar diversas soluções e bons exemplos de dispositivos de resfriamento. Se você tiver alguns outros exemplos na sua localidade, comente no post ou nas redes sociais para que possamos pesquisar e desenvolver novos artigos.